terça-feira, 23 de agosto de 2005

Metamorfose


Preciso escrever para tentar perceber para onde vou, para onde me levas.
Preciso abrir caminho por entre as artérias do meu coração, para deixar circular os sentimentos que já não sabem que rumo tomar.
Preciso limpar a cara e o sorriso, lavados de lágrimas tão gastas que já nem sabem a sal.
Preciso reprogramar o cérebro e apagar estes virús que a vida foi deixando e que fazem com que a razão e a emoção se anulem mutuamente numa guerra constante sem vencedores, só vencidos.
Preciso deixar de parte todos estes cheiros que se acumularam nas narinas e me sufocam e me hipnotizam... para respirar oxigénio puro, para me conseguir respirar a mim.
Preciso revitalizar a pele gasta de tanto tocar, de tanto tactear, de tanto roçar e arrepiar, para ter coragem de me olhar nua ao espelho.
Preciso esfregar a língua tonta e cuspir até secar para poder voltar a falar de mim.
Preciso queimar velas de palavras que me entopem os ouvidos para ouvir de novo o mar, os pássaros e a minha voz esquecida.
Preciso renovar as películas sujas que me toldam a visão para fora e para dentro...
Preciso de voltar a encontrar-me comigo...

sexta-feira, 5 de agosto de 2005

Aquele que partiu


(à tua memória Ziito)

Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.
Ele não ficou para connosco
Destruir com amargas mãos seu próprio rosto
Intacta é a sua ausência
Como a estátua dum deus
Poupada pelos invasores duma cidade em ruínas
Ele não ficou para assistir
À morte da verdade e à vitória do tempo
Que ao longe
Na mais longínqua praia
Onde só haja espuma sal e vento
Ele se perca tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu próprio pensamento
E que ninguém repita o seu nome proibido.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 4 de agosto de 2005

Sinto a tua falta...


Sinto o teu mar gelado inundar os nossos sonhos, que quisemos construir sem bases e que desmoronaram ao primeiro sopro... Ainda preciso tanto do teu calor que me inunda a pele em desejos, das tuas palavras de repreensão que me chamam à terra, da tua mão presa no meu cabelo e do meu cabelo espalhado pelo teu corpo... Já não calas a minha boca com a tua e com isso eu digo tudo o que me vem à cabeça. Já não posso passar a minha língua pelo teu peito, pelos mamilos, e sentir esse suave trago de prazer que me fazia sentir viva, que fazia valer a pena...
Tentei... este tempo todo tentei fazer-te feliz... Mas não te posso dar algo que não tenho e o que resta em mim não te faz falta... Sobra-nos aos dois.... Que caminho tenho agora à minha frente? Para onde olho só vejo espelhos e todos eles refletem a minha angústia... Podiamos nós ter sido alguém sem ser preciso morrer primeiro?
Quando me abraçavas eu penetrava em ti e depois penetravas em mim e eu abraçava-te com força... Assim andamos enrolados e entontecidos, muitas vezes sem saber onde começávamos e onde terminávamos. Depois de tantas voltas o coração ficou enjoado e quis paz.... Mas já só sabiamos tirar ao outro o ar que faltava em cada um de nós, separados...
Eu gosto de ti e tu... tu gostavas de também gostar de mim... Ambos sabemos que as coisas não são assim... E mesmo sem querermos voltamos ao início do fim onde eu te olho com o fogo a queimar-me a vista e tu com esse mar gelado que me inunda...
E ainda preciso tanto de ti e dos sonhos que não conseguimos construir...